Saturday, January 14, 2012

SEMPRE QUE UM RUBOR EM MIM ENLOUQUECE


a suprema luz de merecer
um amor ao menos antes de morrer
(Abel Silva)

Sempre que um rubor enlouqueceu em mim
Com esse sangue carmesim, que escorre das horas
E que é como um excesso de vida que afoga a tarde,
Atônito e humilde, me curvei para colher os meus pedaços.
Tal se, feito o dia, eu fosse composto de partes
E as houvesse perdido pelo ao longo do caminho.
Ou como se uma rosa inesperada
Que se tivesse aberto dentro de mim
Também de repente se despetalasse.

Amar é alguém não saber quais são as suas partes.
Saber amar é não se saber parte de si.
Amar é uma loucura sistemática,
Uma ciência aprendida ao custo
De insânia e de luto,
Que aliena como a dor o amador
E que mata como o segundo.

Toda vez que o amor me assassinou,
Morri como se morre de suicídio ou de acidente.
Mas se morri todo, não morri por inteiro.
E alguma das partes mais sôltas de mim,
Levada vento do mundo, ainda pulsa.
E arrancada de mim, deseja e até deslembra
Que somos sombra e que numa tenra manhã,
Da qual ainda trago o morno cansaço,
Entre juras e panos de amor me assassinaram.

Sempre algum estranho me sucedeu.
Sempre um sobrevivente usurpou
Minha voz, meu gesto,
Meu medo de morrer e de ficar só.
E prossegui praticando as minhas rotinas inúteis,
À semelhança desses mortos que não sabem que partiram
E que repetem pateticamente contritos,
Os mitos e as alucinações dos vivos.

Sempre que fui assassinado,
Ergui com denodo uma casa diferente.
Me cri renascer, como o fogo
Às vezes recobra das cinzas,
Ou como as estações retornam sempre,
Mas às vezes antes do que previstas.
E cri que era firme, e me disse
Que essa era a morada que sempre me convira.
Mas se o tremor de uma voz a visita,
Descubro que o cimento era todo argila.

Toda vez que morri
Dos despojos se alimentaram os pássaros da tarde.
E, quando anoiteceu, um fremir subterrâneo
Sob a pele ainda se escutava.
Mas não era a chuva que um dia nos lavou,
Nem as cores grunhindo depois que se calaram.
Menos que torrente, era apenas o suspiro
Que repete, sem nunca merecê-la,
A água dos que me carpiram.

Sempre que o amor me assassinou
Me ocorreu reencontrar, confusos,
Tal como em sombra diluídos,
Os fantasmas daqueles que me amaram,
E que eu mesmo assassinei.
E ao vê-los então os julguei
Como em certas feitas me encontrei,
Também calmos e pacíficos.

Pareciam imóveis e imunes à brisa do desejo
Que neles roça uma perene indiferença.
Ninguém diria que o fogo que os mantinha
Comburiu-os em carne viva.
Tampouco que o mármore que os grava à terra
Nem sempre teve a inércia de uma pedra.
Mas se a paixão que os moldou
Hoje é só a forma do gesto que vestiram,
Se das suas faces orvalha, lenta e esquiva,
Em lugar das lágrimas essa pérola cristalina,
não foi culpa minha, nem foi culpa de ninguém.

Toda vez que o amor morreu em mim
Também morri, também perdi
Minha razão e substância.
Mas sei que sou o fiel depositário
De mil mortes latentes em seu devir.
E as morrerei todas, até que outra vida nos separe,
No pesar e no prazer, no gozo e na sevícia
De viver de um amor que me assassina.

Sunday, January 8, 2012

SEPARAÇÃO DOS CORPOS


Quando despertares,
já terei partido.
Como o jornaleiro que ao pé da porta
depositou a página do dia,
quando despertares,
já terei partido.

Breve e silente como o breu
que foge abrupto do sol da manhã,
quando despertares,
já terei partido.
E só me deteria se o tempo
parasse diante de mim como um rochedo.

Porém sigo na exata velocidade
da luz com que fui lançado,
estanque como um rio que tivesse secado
e só continuasse a correr nos mapas
em direção à ignota paisagem
em que as lágrimas evaporaram.

Leve vou daquele amor que transbordava
da tela de qualquer cinema, e inundava o mundo inteiro
nos escalando pelas pernas, troncos, cabelos,
e nos transportando com suas alegrias portáteis
e chegadas ao esquecimento como um guarda-chuva
(embora não houvesse dias de chuva),

mas que era tão esquerdo
que não servia dentro de si mesmo,
e tão inútil que dele nada restou
que servisse de souvenir ou de sabedoria
(embora tornasse o dia mais claro que o dia
e pusesse flores onde flores não havia),

e que era tão ubíquo que, ao expirar,
tudo o que ficou foi a sua falta,
teimosa como uma campainha
e estridente como o sol batendo na cortina
(embora, ao esfregar dos olhos a fuligem do sono,
percebêssemos que em verdade seguíamos dormindo).

Mas se erguerá a hora
escondida na sombra
só para que prossiga.
Um ônibus parará
apenas para que me colha.
E a bocarra do dia me devorará

com minha pátina e minha apática
treva interrompida.
E nada restará da noite a não ser
a pálida beleza da palavra
e um oco atrás dela,
onde o amor não se encontrava,

a sensação de que foi tudo um sonho,
e a noite se dissipando
por trás de atrás da porta
num sonho ainda maior,
pois amanhã nunca tarda
e a manhã sempre acorda.

OCASO



as cartas que me enviaste
sobreviveram ao ocaso do desejo,
estão imóveis como a gaveta no encaixe
e repetem as nossas mesmas frases

este vaso de flor contém inutilmente
os restos da planta morta,
e sob os despojos ainda brota
um feitiço enterrado

nada nas coisas parece
gerar a sombra que em meus olhos desce,
nem nada esboça a ínfima vontade
de distrair ou de me consolar

percebo-me letárgico, em preto e branco,
como capturado por um cinematógrafo antigo,
trago os movimentos mudos e artificialmente rápidos
como num filme de Buster Keaton

evolvo em astro despaisado, envolto
em vazio por todos os lados,
o telefone em vão grita por socorro:
recuso o carinho culpado

de quem não tem já não tem amor

DESPEDIDA



explode a tarde, corpos e sombras tombam
maduros para o amor, mas apenas a treva voa,
o despertar nos reparte nas duas metades
de antes do quarto dormir, marejadas da viagem

a luz virá pousar aqui no meu olhar,
e só de roçá-lo com a mirada confusa
das coisas indistintas na penumbra,
o teu corpo me beija sem despertar

desejos inúteis desfilarão
ante a nossa inocência reconquistada,
mas nós só sobraremos nos corpos nus
onde morreremos sem nome

como morrem os homens...
e tanto fogo comburido na cama escura
nos devolveu essa tibiex difusa
da manhã escondida num canto da rua

tendo sido feitos para o não-ser,
como o voo que desfere uma flecha,
nossa canto ruma ao olvido
que ousará dar ouvidos àquilo que em nós calamos

leves de cansaço, deslizaremos como sombras sobre andares,
e como fantasmas atravessaremos muros:
a morte virá mas só nos colherá maduros,
a morte esperará para resgatar-nos humanos

mas estamos sempre de retorno,
como as estações e a aurora
e estamos sempre partindo
e, nos despedindo, vamos embora

LÁZARO


Sou eu, nado e criado para amar,
E que não sei amar. (Miguel Torga)

Alguien dijo palabras de nuevo nacimiento.
Mas no hubo allí sangre materna ni vientre fecundado
...Sino el cuerpo de um hijo de la muerte
(Luis Cernuda)

É recomendável não se acostumar com o escarro e o sangue.

A parede fria escorre um choro que é metade musgo metade mudo.

Nesta ausência numerada, à semelhança das lápides,
das listas de desaparecidos e gavetas perfiladas,
não é vida, é vinagre
o que entorpece ou escorre em nossas chagas.

Mas é preciso não abdicar da vida
quando tudo o que quase resta
é quase um resto de vida.
É preciso não descansar na sombra da vida.

E eu prometo que nunca mais dôo,
não perco meu nome, meu rosto,
prometo que nunca mais morro.

Tua presença feita em argila e sonho
de algum arremedo de idéia fixa me observava.
Teu olhar pousava no que quer que eu pensasse.
Eram tuas as horas que se guardavam na minha memória.
Cada gesto meu, vacilo ou vinco
compunham a tua, não a minha história,
de sorte que não distingo a lembrança do que nela acrescento,
como já não sou onde estou, mas em quem me invento.

E tudo o que amei, amei em ti.
Não amei as virtudes que encontrei em ti.
Mas se as amei um dia,
foi só porque as possuías.

Dividimos tanto tempo juntos
que já empedernimos e aos poucos emudecemos,
e já não nos indagamos nem tampouco nos perguntam
por que diabos estamos juntos.

Às vezes, é como se nunca houvéssemos nascido
ou sido antes disso,
como se nunca houvéssemos rompido
com o torpor dos nossos descompassos
a petição de um círculo.

Uma só pele.
Uma pele não é muito.
Nela mal cabe uma vida.

São nomes de mães ou amadas,
corações flechados, baba,
ideogramas que dizem
sabe deus o quê.

São códigos de barra,
salmos e mantras, retratos da virgem,
apócrifas efígies, trucagem.

Uma pele são fuligem, cicatrizes,
sinais que marcam
as etapas da viagem,
São cheiros de cebola e cansaço,
coceira e salsugem.

Uma pele às vezes vale uma prisão.
Uma pele pode ser toda estuque.
Cacos de garrafa, farpas, farrapos
de cartazes, uma pele é muro.

E ao mesmo tempo os estampados tatos
de todos os que me passearam
e daqueles em quem eu passeei.
Uma pele é desejo de contato.

Uma pele é muito. E pouco.
É onde moro, é onde sobro.
É onde me escondem. Uma cela.
Um sonho em que não se desperta.

Esta é a cor do meu pesadelo,
não consegues vê-lo?
Talvez não seja coisa lembrável.
Tampouco algo digno de ser roçado,
avistado, mesmo que de relance,
psicografado, em sonho ou em transe.

Entretanto, sentes se ele,
por susto ou descaso,
se abre num grito de repente
ou escorre aflito em torrentes
dos meus nos teus olhos que,
no entanto, não o vêem.

Não consegues ver de cor meu pesadelo?
Cinzento, de cimento e chumbo.
O outono despluma o mundo,
e o desnudo sugere flores e frutos.
Novos viços e cores, novos abismos.
E tudo será novo.

Só eu como casca seguirei,
sem carne e sem sumo.
Ou antes, um morto me seguirá.

Um morto me seguirá mudo,
me seguirá surdo,
me seguirá roto.
O meu próprio morto me esperará e me carregará
no oco fundo dos seus membros cotos.

Deus não está aqui.
Fecho os olhos.
Os sentidos me evadem.
É preciso buscar em outro lugar.

Deus não está em qualquer outro lugar ou mundo.
Mas Deus sobretudo, Deus não era sequer necessário:
sob circunstâncias ligeiramente alteradas,
num universo privo de consciências carentes e culpadas,
Deus nunca existiu como o amor.

Isso tardiamente entendi,
já falecido ou nascido no bojo da minha noturna sorte,
pois o amor que não me salvou
o amor sempre foi mais forte que a própria morte.

Contudo, no embotado dos dedos ainda crispava
um pulsão, uma extravagância de sobrevida.
E nossas unhas sem raiz mas movidas
de um esforço ínfimo gretaram
a inesperada superfície
de mundos claros, extraordinariamente planos,
não poluídos dos bons motivos
que a sós e a esmo arquitetamos.

Já me vejo, pouco a pouco, de fora.
Minha presença é apenas demora,
hábito, inércia, vontade de entropia.
Porém, daqui a pouco já ressurjo
da história feita cinzas
mais grávido ainda

- Mas então alguém nos chamou pelo nome,
levantamos, assinamos alguns papéis,
e nos deixaram sair.

ELEGIA QUASE ODE



quem de dentro de si não sai
vai morrer sem amar ninguém
(Cacaso)
Doce amar em algum momento.
Contemplar um sonho que dorme
envolto em sonho, ao nosso lado.
Sentir a familiaridade das rosas imprevistas
que brotam dos nossos humores
e se espalham sobre as coisas
ao nosso redor feito erva daninha,
pela cama móveis no canteiro
sobre a calçada e rotas de fugir.
E que vicejam a despeito
de nossa desídia e aspereza,
como se as nutrissem mesmo
os nossos truques em contê-las.
Mas quantas vezes perdemos
toda a nossa essência
apenas por tentarmos ser inteiros!

Não sabias que a um só toque
de contrição ou terror te dissolverias.
Como se em face de um ardor maior
o teu fogo ínfimo calasse.
A seu tempo pareceu impossível declinar
o chamado. E a chama te envolvia
cálida e mansa como
a idéia do amor antes do amor.

Outras veredas se abrem em teu jardim.
Prometes encontrá-las assim que o tempo consinta.
Não sabes o que abrigam para além do ponto de
onde se abrem como a chamar-te,
e as árvores se curvam para saudar-te.
Mas há tempestades em ti, e só tu o sabes,
e correntes que te carregam de uma a outra parte
e não cessam nunca nem te deixam jamais pousar.

Triste amar uma idéia.
Amar o que é fluidez pura.
Amar o que é tão ubíquo
que é como se não existisse.
Ainda mais triste amar o que existe
mas não permanece, o que passa
mas nunca fica.
Amar o provisório, o específico.
Na evanescência desse objeto,
o turbilhão dos efêmeros nos arrasta consigo,
e rodopiamos na deriva
dos adeuses e devires.

Um Jano jungido à fonte se pensa,
e é como se cada face refletida te pensasse.
E é distinta a paisagem,
conforme se olhe para frente ou para trás,
mas distintos também os olhos que as trazem.
Acaso saberia permanecer um quarto fechado,
passado longo tempo, ao abrigo da intempérie,
depois de cerrada a porta?
Ousaria qualquer cor ou canto ou traço
restar idêntico a si mesmo,
quando o estofo de tudo vibra
e é despedida e movimento puro?
Quanto de nós se esvai, quanto se fixa?

E assim, quanta verdade assiste aos amantes
quando se prometem amar para sempre?
Seria possível permanecerem vivos
se incessantemente aflitos de tanta afecção?
Dizem que, caso os bardos vivessem sob ininterrupta inspiração,
a musa lhes gastaria a voz, restando de tal modo mudos,
que seu canto engolido nos enlouqueceria,
sucumbindo em seu silêncio
tudo o que os ouvisse ou deixasse de ouvir.
Não contaminariam também os amantes,
tornando em anjos os que os tocassem,
apenas pudessem se amar pela eternidade?

Onde o espanto porventura exista
nossos sentidos, que são relapsos, não nos ensinam.
Somente o coração, batendo mais rápido,
como um cão a anteceder-nos, avisa
que ultrapassamos o limite de algo essencial.
Mas tão logo superamos o horizonte de eventos,
uma ciência nova se grava em nosso ser
e nunca desaprendê-la
nos restituiria a beata inocência.

Pois não moramos dentro de nós,
como um gato ou uma pedra,
nem estamos imersos em nosso ser, o qual escondemos
como um tesouro que já nos pertencesse,
mas que nos recusamos, e nos olha com horror.
Por isso, só nos é dado conhecer o que há
do outro lado. E só o estranho nos enternece.
E só podemos ouvir e dançar
para um peito que também vibra fora de nós.
Se a eternidade, entre todas as coisas que não somos,
a mais estranha, nos espia e nos tenta
com a sedução de seu prêmio
irrecusável posto imerecido,
como resistir a que nos consuma
no fogo sem culpa?

Mas sempre resta um pedaço de nós,
que brota e prolonga o nosso nome.
Como há sempre a herança de um gesto
que, deslembrado, em nosso corpo ainda circula,
como a ilusão de movimento que o artesão
acrescenta à escultura.
E sempre nos assiste novamente a esperança
de um dia voltar a contemplar,
ainda que remota, ainda esquivamente,
para além dos muros indeléveis do tempo,
onde nos espera ansiosa, madura,
a lembrança futura
de um novo jardim.

A FÔRMA


depois de nossos corpos terem derretido,
escuros como morcegos, num quarto trancado,
cegos de desejo, seremos menos que a fôrma
do amor que um dia fomos, menos que a casca
em que o amor, ao eclodir, nos transformou

quando formos apenas a sombra
do amor que um dia fomos,
existiremos somente fora de nós,
à maneira oca dos nossos nomes
saltando em outras bocas

seremos sequer a semente
do que o amor nos deixou ser,
menores que a suma de tantos sumiços nossos,
seremos tudo somado somente
aquilo que o amor deixou de ser

a roupa sem o corpo, as metades sem o todo,
sós, seremos só o que se dissipa,
o que resta mas não fica,
seremos um, seremos dois,
ou já não seremos mais nem isso:

seremos a sobra do infinito

Thursday, January 5, 2012

O COLECIONADOR


I

Tá vendo esse piano forte? Não sei como foi parar aí.
Deve ter se infiltrado sorrateiramente no apartamento
como a manhã. Ou então, feito às vezes um passarinho,
deve ter aproveitado a desatenção de uma fresta de janela.
Acho mesmo que tem um pássaro clandestino
refugiado piano a dentro. Não parece ser forte,
canta com desafino, quem sabe um canarinho, misto.
Me indago, se não tivesse perdido a cauda,
seria menos franzino? E tem passarinho sem rabo?
Passarinho de rinha, coitado, enfim aposentado.
Pedindo pra não ser tocado. Pois, do contrário,
é do tipo masoquista, que só gorjeia se martelamos
com dedos destros ou tacanhos seus bicos pretos brancos.
E se uma bala perdida acertasse na sua cantoria?
Mas não me entendo dessas coisas de hoje em dia.
As coisas que sempre me interessam se perdem
nas recurvas dos dias, se é que ainda prosseguem vivas.
E assim, leio no banheiro as revistas pré-datadas
que há muito me mandaram, bem ciente, como jornalista,
que não existe coisa como notícia de ontem,
e que o novo é o mesmo de sempre desde que decretaram
que os dias andassem, ao invés de se misturarem.
se olhando parados como na eternidade.
De modo que, isolado em meu retiro involuntário,
acabei afeiçoado pelas coisas que há muito me visitaram
e depois nunca mais me abandonaram.
São meus coabitantes, meus sublocatários.
E faço cara feia se me chamam de colecionador.
Colecionador de coisas já fui, e se ainda fosse
devia conhecê-las com minúcia,
mas meu colecionismo hoje é de araque:
uma a uma não conheço nenhuma.
Meu gosto é do amontoado, do que não trouxe um nome.
E que, não tendo nome, também não tem brios de homem,
de modo que, se com elas cruzo e deixo de dar boa-tarde,
não acham em meu descaso ocasião de se contrariarem.
E elas são mesmo tantas que tantos nomes numa língua sozinha
não se guardavam. E então, assim redimidas
do tempo e do conhecimento,
como os homens antes das línguas,
é como se sempre dormissem e leves de sonho voassem.
E, se acaso apanho alguma em meio a num desses transes,
num desses relances
em você pergunta duas vezes
foi isso mesmo o que vi?,
a sacana abre a pestana só de manha,
para depois se esconder de novo
e, como um passarinho surpreendido,
prosseguir seu voo
do ponto em que o interrompi.
Mas tenho ao menos cultivado o cuidado em não deixar
alguma nova entrar.
Só o passarinho, mas ele não foi convidado.
Malas diretas, convites, mando o porteiro entregar
para os arrivistas do oitavo andar.
E essa é toda a caridade que tenho praticado,
e tanto mais desprendida,
quanto presto a gente que dela não necessita.
Todavia, a casa ainda assombrada de convivas
esquecidos de partir
está sempre um tanto escura e um tanto cheia.
Tão escura que eu mesmo às vezes me apago.
Quando a Moninha estava viva,
costumávamos dar duas giras
em torno do edifício,
quando era a hora
de ela fazer os seus ofícios. Agora,
silenciada a besta latidora, e eu e a tua mãe estranhados,
retornados os vizinhos ao sossego de antes das pelejas e latidos,
não saio porque não vejo mais recreio.
Prazeres tenho às forras aqui dentro.
Mas muito do que vocês chamam
traste ou entulho
(eu sou pouco velho mas não todo surdo),
já pede substituição ou conserto,
como o ventilador, reparou?
O pescoço torto como se sofresse
de um torcicolo ou de dor de dente.
E nem tudo dá só pra chamar
alguém subir pra arrumar.
É, acho que alguma hora
vou ter que sair e dar uma volta.


II
Mas entra, tira o agasalho.
O agasalho pinga porque pinga lá fora.
Põe ele atrás da porta.
Acordei agora e nem tive chance de passar no banho.
Ou olhar pro céu e julgar do tempo.
Todo mundo reclama do tempo
o tempo inteiro, deve ser só papo fiado,
senão alguém já tinha feito algo a respeito...
Faça chuva ou faça sol, é sempre a mesma ladainha,
as mulheres esconjurando o frio,
e os homens suando a cântaros.
Claro que tempo não é o mesmo que clima.
Não acredito nos catastrofistas,
mas já está na hora de alguém ceder.
Não me lembro de ter chamado você,
mas que bom te ver, seja bem-vindo,
meu filho favorito! Shalom e mais tudo de bom.
O que te arrastou para esse bairro de velhos
e ricos de baixa entrância,
esquecido dos percurso de recreio,
mas alvo primeiro do telemarketeiros
de seguro, e trajeto predileto das ambulâncias?
Terá confundido meu esconderijo
com a seção de achados e perdidos?
A chuva fina entrou pingando contigo dentro da casa.
E é por sua graça que sabemos
que ainda é outono, se temos
compartimentos seccionando o ano
como tínhamos antes do aquecimento.
E o casaco pendurado atrás da porta
lembra uma folha que não tarda
em ser também arrastada pelo vento.
Mas não tão cedo, te acomoda e fica um momento.
E ainda assim pinga. Você tem goteiras!
Mas será que pinga através do crivo
das frondas do outono quase ido
algum raio de luz que penetrasse
entre as gerações de folhas mortas
e com sua força renovadora aclarasse
retalhos inteiros da nossa existência
abafados entre as camadas do tempo?
É um poema meu, ou de algum outro boêmio,
diz do que perdemos, menos que para a morte,
que para o esquecimento.
Há quem diga que morremos da mesma morte,
seja no corpo, seja na memória dos outros.
Por isso, os cristãos acreditam em salvação pelo corpo.
O que seria bom, se não fosse simplesmente incrível.
Mas os gregos, menos transigentes,
acreditavam na salvação pela memória.
Consolação de segunda
e de segunda mão essa salvação delas pela glória,
mas pelo menos possível de fazer.
Imagino se os mortos pudessem nos dizer
o que pensam a respeito.
Estariam tão cobertos de folhas
que sua voz não se distinguiria daquelas das árvores.
De jeito que, se ouço o gemido do vento
e com ele o acompanhamento de instrumentos
que sussurra nas folhas,
posso jurar discernir às vezes,
as distintas vozes, as entonações, os maneirismos,
de tantos amigos que já são sombras.
Acho que sim, para nos preparar contra o olvido não é preciso
como um faraó juntar muita coisa.
Nem é preciso acumular muita força,
às vezes basta
um termo ou um modo de falar parecido,
um sonho na sesta do domingo,
às vezes uma visita inesperada.
O primeiro deus imortal teve que devorar o tempo
para não ser comido. Mas nós somos o seu alimento de direito,
e só a lembrança nos salva.
Todo mundo reclama todo o tempo do tempo,
é preciso alguém dar um jeito...
Mas deve ser triste o tempo, o trabalho da desmemória,
deve ser triste como perder aquilo de que não se gosta.
Porque o remorso, o irmão do meio,
sempre meio esquecido,
o remorso ainda é melhorzinho que o olvido.
E lembrar não é só coisa de velho.
Aliás, é velho quando se tem por conselheira
uma memória dormideira.
Nem é hobby de colecionador.
A memória é o humano trabalho
de abrir buracos na trama dos eventos,
deixando escapar uma manhã da infância,
por exemplo, cheiro de café coado
sobre o fogão a lenha, e o sabor
daquelas manhãs tão frias
que me crispavam os músculos de criança
das costas até a mandíbula, e, menino, como doía!
Ou melhor, dói ainda, o prego na carne, na parede...
E as folhas da mata retesas pela geada
afiavam as agulhas do vento.
E a dor cada vez mais forte,
e o cheiro cada vez mais intenso,
e o buraco cada vez mais fundo,
e sempre a capa mais rasa,
e sempre a trama mais esgarçada,
até que da trama não reste nada.
E nos sejam finalmente devolvidos, antes que seja tarde,
ao custo prazeroso do esforço da lembrança,
mundos inteiros que perdemos deixando-nos à distância
se deixarmos de esquecer, retrazendo-os à nossa vizinhança.
Será, quem sabe, a eternidade?
Ou um tempo verdadeiramente novo
sem o engodo dos eternos retornos?
Se for, combinamos de ir juntos.
Quem sabe a idéia empolga
e deixe então o mundo de ficar dando voltas
em torno do mesmo assunto.

III

Mas não tenho medo da morte, como nunca
pude crer em deus.
Diz que ele escolhe os seus,
emtão devo ter ficado do lado de fora da coleção.
Também falam que deus prova igualmente
seu servo e quem não crê nele.
Se for verdade, me intriga
a ideia de ter carregado uma escuta
sem o saber, por todo lado,
e não sei se rio ou me embaraço
quando penso também ter sido assistido
nos meus momentos de maior loucura...
Tanto pior ou melhor, tenho vergonha
de pedir para deus as minhas coisas,
acho que não mereço ganhar nada sem trabalho.
E se faço algo errado, procuro eu mesmo compensação.
Então deus pra mim não ia servir pra muita coisa.
Quem sabe deus esteja mesmo presente,
só não queira perturbar a gente,
e até nos ouça chorar e mantém-se
respeitosamente silente,
embora no fundo se lamente
por sermos sempre tão ridículos,
e, na verdade, em cada uma dessas ocasiões,
nada pudesse fazer a respeito dos nossos faniquitos
nem das nossas tribulações.
Ah, eu tenho a respeito disso
uma teoria nova, também inacreditável,
mas que faz sentido.
Sustento que deus é um microeconomista
que faz conosco experiências de escolha racional.
Não temos como não ter apego a uma terra, uma moradia,
ou nos desejar uma vida mais distendida.
Mesmo um rato racionalmente esconde dos outros um resto de comida.
Mas então deus vem e nos bota amor
e nos vê fazer as coisas mais insensatas,
doar o que não foi merecido,
perder o que não foi contendido.
Ele deve ser um bocado bom em matemática
e por isso se atrapalha com a lógica equivocada
que permitiria entender por que,
pressionados por um mundo de escassez,
no qual de cada um só havia que esperar
a opção de ser egoísta, o amor, esse arroubo da irrazão,
nos liberta da lei natural e instintiva
da autopreservação.
Somos a loucura de um universo são.
Lembro da exemplar insanidade
daquele santo budista,
que, para dar de comer ao cão também faminto,
cortou e lhe serviu da sua própria carne...
E, no fim de tudo, a conclusão da pesquisa
sobre o amor, ensina ao deus da razão
que não existe verdadeiro saber
se desprovido de compaixão.
Amor que nos faz, porcos de ensaio,
mais nobres que as pérolas que nos jogaram.
Te parece cruelmente bárbaro?
Mas eu já tinha prevenido
que, segundo a minha premissa,
meu deus é um economista...
E é o quanto me arrisco a falar sobre ele.
Parece que medram cada vez mais seitas de última hora,
quanto mais se explica o mundo menos se entende!
Mas não sei bem, faz tempo que não vou lá fora,
quando tiver de ser,
vou dar uma volta.


IV

Tenho escrito. Admito:
falei tudo isso porque só agora me dei conta dessa vocação,
extemporaneamente ou por ser ela mesma temporã:
a de colecionador.
Colecionador não de coisas, mas de memórias.
Achei nesse monte de montanhas caóticas
uns remotos cadernos de colégio
em que garatujei meus primeiros versos.
Para mim, aquelas poesias eram a coisa mais linda,
eram capazes, imagine se fosse verdade...,
de justificar uma vida.
Meus sonhos tiritavam dentro daquela mochila.
Hoje sou todo prosa,
gosto mesmo é de contar histórias,
e nos meus romances contei memórias
de outra gente, inventadas ou plagiadas da vida.
Mas me ocorreu num desses dias,
que nunca falei sobre a minha infância,
e por isso há pouco te narrava as de outono.
E alguém escreveu, salvo engano,
o Paulo Mendes Campos, que a infância
só existe para ser recontada.
De criança fiz minha primeira coleção,
bem antes de virem os selos, as miniaturas, os amoricos.
A primeira coisa que colecionei
foram pinheiros.
Pinheiros que eram meus,
porque só eu sabia o nome deles.
E um ano de neve em Curitiba,
a pequena casa de madeira,
minha horta de morangos,
o zoo e a lenda de uma leoa perdida,
meu pai janota e deliciosamente cínico,
minha mãe telepática,
minha irmã boa boa e os seus bichos,
estão todos aqui entre as minhas coisas
e compõem o arcabouço profundo dos eventos
no qual os demais apenas foram se encaixando.
No mais, as alegrias de uma vida foram indo ou ficando.
Você me conhece, não sei me queixar,
nem gosto de falar de coisas tristes.
Mas é difícil ser sozinho.
É difícil, mas se aprende.
Não sinto falta de mulher.
E para mim, a tua mãe foi sempre
(e deve sentir esquisito para você ouvir isso,
porque você tem nela amor de filho),
sempre foi a pele, o gosto,
o ideal de matéria a que eu sempre aspirei
e porque tão carnalmente perfeito
foi também o metro do desejo
com que pesei às vezes a contra-gosto
todos os meus outros encontros.
Estranho que hoje nos desencontramos
e sejamos como estranhos.
Mas saudades da felicidade que tivemos
não tenho, porque não mais sinto
necessidade de felicidade.
E felicidade de verdade só existe na carne,
não no espírito.
Nem é a felicidade ou a necessidade o motor da gente.
O que move o homem é não poder não ser,
simplesmente.
E continuar a ser,
sozinho ou dando voltas.
Agora, o que mais corrói,
não é que a Moninha me abandone,
mas que às vezes deslembre seu nome.
Fora com os fantasmas!
Ou eles ou eu saio de casa.
Quem sabe numa manhã mais clara...


V

Mas se é menos sozinho
quando se tem amor num filho.
Mesmo quando mora longe,
mesmo quando se esconde.
E alegria você sempre me trouxe,
mesmo sem querer.
Lembro você rapazinho,
quando passava e as vizinhas
se cutucavam, como é bonito!
E que orgulho besta esse
de ter um filho que é bonito.
Mais que ele ser um erudito,
um doutor ou um cara bem-sucedido...
Ter sucesso nesses tempos estranhamente quer dizer
ser rico, me pergunto por quê,
não teria tido êxito a despeito
de ter se tornado um homem de bem,
embora sem cultura ou dinheiro ou título?
Mas, voltando a meu orgulho besta por tua beleza,
talvez seja porque mérito
maior que o de ter mérito
é não precisar dele e ganhar do acaso
um bom coração sem dar-se ao trabalho,
e a beleza por recompensa.
Mas você também teve os seus casos,
tristes ou ditosos,
e carrega nos traços os cursos do amor,
caminhos de serpente, sempre
tão tortuosos, que entortam a gente.
E de novo, que maior bruxo que o amor?,
o pai do impossível, o amor que conseguiu transpor
aquela carne tão dura que eu era
numa coisa como esta, flácida e terna...
Sempre digo que é você
meu filho favorito, não porque não tive outros,
mas porque foi sempre o mais merecedor,
e mais bonito na essência que oculta humilde
que no físico,
mas este não dá para esconder,
então ao menos não te cabe ser tão tímido...
Não depois dos trinta, é coisa de maricas.
Ah, desculpe, não quis ofender,
não quis dizer isso, retiro,
ou melhor, foi isso mesmo, seu bundão,
sempre respeitei sua opção,
e não é agora que vamos começar com firulas,
isso nunca foi caso para frescuras,
e os últimos trocadilhos
eu também não retiro.
A saúde vai mais ou menos,
sempre um pouco mais para menos,
mas, já disse, não guardo receios.
Antes de morrer, o Leminski
escreveu que a vida tinha virado moléstia crônica.
Ainda mais nesses tempos de medicina biônica.
Viver e viver e mais viver,
viver é vício que fissura.
E depois de viver tanto, viver não tem mais cura.
Já não há como perder o desvario de viver.
Condenada sem culpa nenhuma,
treme doente de medo a morte.
Pra quem sobra, boa sorte.
Ao invés de ficarem se perguntando
se há vida depois da vida,
deviam instituir uma pesquisa
sobre a sobrevivência do corpo
à morte da consciência.
Isso sim dava uma puta ciência.
A exata ciência de que se precisa
para compreender os nossos dias.
Rsrsrsrs
Que dia é mesmo hoje?
Ah, é segunda.
Segunda-feira, segura a fera.
E o fórum, em pé de guerra?
Olha o sol, é o sol de novo,
pulando pela janela.
Quem diria que não faz muito
parece que chovia em todo o mundo,
até você, lembra?, até você chovia!
E o sol vai separando cuidadosamente as coisas,
como as figuras sobre um álbum,
vai inscrevendo na legenda nomes de batismo,
redimindo o que eram meros feixes de indivíduos.
E cada um na sua solidão obrigatória
parece comburir
na luz que lhe é própria.
Sempre vai existir a beleza,
pois tudo almeja a escapar de si, mas sem se distrair,
tudo almeja a fundir-se, mas para falar mais de si,
como num dia de sol.
Ai, aquela manhã cinzenta parece ter sido ontem,
como o velho de ontem já parece tão longe!
E o de amanhã, então,
quem vai conseguir enxergar a tamanha distância?
É, faz muito,
muito tempo que não vejo o mundo
do lado de fora do esquadro
desta janela, deste quarto,
acho que já está na hora,
como está chegando a hora
de você ir embora.
Então, levanta,
apanha tua manta,
vamos sair
e dar uma volta.