Sunday, January 8, 2012

ELEGIA QUASE ODE



quem de dentro de si não sai
vai morrer sem amar ninguém
(Cacaso)
Doce amar em algum momento.
Contemplar um sonho que dorme
envolto em sonho, ao nosso lado.
Sentir a familiaridade das rosas imprevistas
que brotam dos nossos humores
e se espalham sobre as coisas
ao nosso redor feito erva daninha,
pela cama móveis no canteiro
sobre a calçada e rotas de fugir.
E que vicejam a despeito
de nossa desídia e aspereza,
como se as nutrissem mesmo
os nossos truques em contê-las.
Mas quantas vezes perdemos
toda a nossa essência
apenas por tentarmos ser inteiros!

Não sabias que a um só toque
de contrição ou terror te dissolverias.
Como se em face de um ardor maior
o teu fogo ínfimo calasse.
A seu tempo pareceu impossível declinar
o chamado. E a chama te envolvia
cálida e mansa como
a idéia do amor antes do amor.

Outras veredas se abrem em teu jardim.
Prometes encontrá-las assim que o tempo consinta.
Não sabes o que abrigam para além do ponto de
onde se abrem como a chamar-te,
e as árvores se curvam para saudar-te.
Mas há tempestades em ti, e só tu o sabes,
e correntes que te carregam de uma a outra parte
e não cessam nunca nem te deixam jamais pousar.

Triste amar uma idéia.
Amar o que é fluidez pura.
Amar o que é tão ubíquo
que é como se não existisse.
Ainda mais triste amar o que existe
mas não permanece, o que passa
mas nunca fica.
Amar o provisório, o específico.
Na evanescência desse objeto,
o turbilhão dos efêmeros nos arrasta consigo,
e rodopiamos na deriva
dos adeuses e devires.

Um Jano jungido à fonte se pensa,
e é como se cada face refletida te pensasse.
E é distinta a paisagem,
conforme se olhe para frente ou para trás,
mas distintos também os olhos que as trazem.
Acaso saberia permanecer um quarto fechado,
passado longo tempo, ao abrigo da intempérie,
depois de cerrada a porta?
Ousaria qualquer cor ou canto ou traço
restar idêntico a si mesmo,
quando o estofo de tudo vibra
e é despedida e movimento puro?
Quanto de nós se esvai, quanto se fixa?

E assim, quanta verdade assiste aos amantes
quando se prometem amar para sempre?
Seria possível permanecerem vivos
se incessantemente aflitos de tanta afecção?
Dizem que, caso os bardos vivessem sob ininterrupta inspiração,
a musa lhes gastaria a voz, restando de tal modo mudos,
que seu canto engolido nos enlouqueceria,
sucumbindo em seu silêncio
tudo o que os ouvisse ou deixasse de ouvir.
Não contaminariam também os amantes,
tornando em anjos os que os tocassem,
apenas pudessem se amar pela eternidade?

Onde o espanto porventura exista
nossos sentidos, que são relapsos, não nos ensinam.
Somente o coração, batendo mais rápido,
como um cão a anteceder-nos, avisa
que ultrapassamos o limite de algo essencial.
Mas tão logo superamos o horizonte de eventos,
uma ciência nova se grava em nosso ser
e nunca desaprendê-la
nos restituiria a beata inocência.

Pois não moramos dentro de nós,
como um gato ou uma pedra,
nem estamos imersos em nosso ser, o qual escondemos
como um tesouro que já nos pertencesse,
mas que nos recusamos, e nos olha com horror.
Por isso, só nos é dado conhecer o que há
do outro lado. E só o estranho nos enternece.
E só podemos ouvir e dançar
para um peito que também vibra fora de nós.
Se a eternidade, entre todas as coisas que não somos,
a mais estranha, nos espia e nos tenta
com a sedução de seu prêmio
irrecusável posto imerecido,
como resistir a que nos consuma
no fogo sem culpa?

Mas sempre resta um pedaço de nós,
que brota e prolonga o nosso nome.
Como há sempre a herança de um gesto
que, deslembrado, em nosso corpo ainda circula,
como a ilusão de movimento que o artesão
acrescenta à escultura.
E sempre nos assiste novamente a esperança
de um dia voltar a contemplar,
ainda que remota, ainda esquivamente,
para além dos muros indeléveis do tempo,
onde nos espera ansiosa, madura,
a lembrança futura
de um novo jardim.

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