Saturday, January 14, 2012

SEMPRE QUE UM RUBOR EM MIM ENLOUQUECE


a suprema luz de merecer
um amor ao menos antes de morrer
(Abel Silva)

Sempre que um rubor enlouqueceu em mim
Com esse sangue carmesim, que escorre das horas
E que é como um excesso de vida que afoga a tarde,
Atônito e humilde, me curvei para colher os meus pedaços.
Tal se, feito o dia, eu fosse composto de partes
E as houvesse perdido pelo ao longo do caminho.
Ou como se uma rosa inesperada
Que se tivesse aberto dentro de mim
Também de repente se despetalasse.

Amar é alguém não saber quais são as suas partes.
Saber amar é não se saber parte de si.
Amar é uma loucura sistemática,
Uma ciência aprendida ao custo
De insânia e de luto,
Que aliena como a dor o amador
E que mata como o segundo.

Toda vez que o amor me assassinou,
Morri como se morre de suicídio ou de acidente.
Mas se morri todo, não morri por inteiro.
E alguma das partes mais sôltas de mim,
Levada vento do mundo, ainda pulsa.
E arrancada de mim, deseja e até deslembra
Que somos sombra e que numa tenra manhã,
Da qual ainda trago o morno cansaço,
Entre juras e panos de amor me assassinaram.

Sempre algum estranho me sucedeu.
Sempre um sobrevivente usurpou
Minha voz, meu gesto,
Meu medo de morrer e de ficar só.
E prossegui praticando as minhas rotinas inúteis,
À semelhança desses mortos que não sabem que partiram
E que repetem pateticamente contritos,
Os mitos e as alucinações dos vivos.

Sempre que fui assassinado,
Ergui com denodo uma casa diferente.
Me cri renascer, como o fogo
Às vezes recobra das cinzas,
Ou como as estações retornam sempre,
Mas às vezes antes do que previstas.
E cri que era firme, e me disse
Que essa era a morada que sempre me convira.
Mas se o tremor de uma voz a visita,
Descubro que o cimento era todo argila.

Toda vez que morri
Dos despojos se alimentaram os pássaros da tarde.
E, quando anoiteceu, um fremir subterrâneo
Sob a pele ainda se escutava.
Mas não era a chuva que um dia nos lavou,
Nem as cores grunhindo depois que se calaram.
Menos que torrente, era apenas o suspiro
Que repete, sem nunca merecê-la,
A água dos que me carpiram.

Sempre que o amor me assassinou
Me ocorreu reencontrar, confusos,
Tal como em sombra diluídos,
Os fantasmas daqueles que me amaram,
E que eu mesmo assassinei.
E ao vê-los então os julguei
Como em certas feitas me encontrei,
Também calmos e pacíficos.

Pareciam imóveis e imunes à brisa do desejo
Que neles roça uma perene indiferença.
Ninguém diria que o fogo que os mantinha
Comburiu-os em carne viva.
Tampouco que o mármore que os grava à terra
Nem sempre teve a inércia de uma pedra.
Mas se a paixão que os moldou
Hoje é só a forma do gesto que vestiram,
Se das suas faces orvalha, lenta e esquiva,
Em lugar das lágrimas essa pérola cristalina,
não foi culpa minha, nem foi culpa de ninguém.

Toda vez que o amor morreu em mim
Também morri, também perdi
Minha razão e substância.
Mas sei que sou o fiel depositário
De mil mortes latentes em seu devir.
E as morrerei todas, até que outra vida nos separe,
No pesar e no prazer, no gozo e na sevícia
De viver de um amor que me assassina.

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