Sunday, January 8, 2012

LÁZARO


Sou eu, nado e criado para amar,
E que não sei amar. (Miguel Torga)

Alguien dijo palabras de nuevo nacimiento.
Mas no hubo allí sangre materna ni vientre fecundado
...Sino el cuerpo de um hijo de la muerte
(Luis Cernuda)

É recomendável não se acostumar com o escarro e o sangue.

A parede fria escorre um choro que é metade musgo metade mudo.

Nesta ausência numerada, à semelhança das lápides,
das listas de desaparecidos e gavetas perfiladas,
não é vida, é vinagre
o que entorpece ou escorre em nossas chagas.

Mas é preciso não abdicar da vida
quando tudo o que quase resta
é quase um resto de vida.
É preciso não descansar na sombra da vida.

E eu prometo que nunca mais dôo,
não perco meu nome, meu rosto,
prometo que nunca mais morro.

Tua presença feita em argila e sonho
de algum arremedo de idéia fixa me observava.
Teu olhar pousava no que quer que eu pensasse.
Eram tuas as horas que se guardavam na minha memória.
Cada gesto meu, vacilo ou vinco
compunham a tua, não a minha história,
de sorte que não distingo a lembrança do que nela acrescento,
como já não sou onde estou, mas em quem me invento.

E tudo o que amei, amei em ti.
Não amei as virtudes que encontrei em ti.
Mas se as amei um dia,
foi só porque as possuías.

Dividimos tanto tempo juntos
que já empedernimos e aos poucos emudecemos,
e já não nos indagamos nem tampouco nos perguntam
por que diabos estamos juntos.

Às vezes, é como se nunca houvéssemos nascido
ou sido antes disso,
como se nunca houvéssemos rompido
com o torpor dos nossos descompassos
a petição de um círculo.

Uma só pele.
Uma pele não é muito.
Nela mal cabe uma vida.

São nomes de mães ou amadas,
corações flechados, baba,
ideogramas que dizem
sabe deus o quê.

São códigos de barra,
salmos e mantras, retratos da virgem,
apócrifas efígies, trucagem.

Uma pele são fuligem, cicatrizes,
sinais que marcam
as etapas da viagem,
São cheiros de cebola e cansaço,
coceira e salsugem.

Uma pele às vezes vale uma prisão.
Uma pele pode ser toda estuque.
Cacos de garrafa, farpas, farrapos
de cartazes, uma pele é muro.

E ao mesmo tempo os estampados tatos
de todos os que me passearam
e daqueles em quem eu passeei.
Uma pele é desejo de contato.

Uma pele é muito. E pouco.
É onde moro, é onde sobro.
É onde me escondem. Uma cela.
Um sonho em que não se desperta.

Esta é a cor do meu pesadelo,
não consegues vê-lo?
Talvez não seja coisa lembrável.
Tampouco algo digno de ser roçado,
avistado, mesmo que de relance,
psicografado, em sonho ou em transe.

Entretanto, sentes se ele,
por susto ou descaso,
se abre num grito de repente
ou escorre aflito em torrentes
dos meus nos teus olhos que,
no entanto, não o vêem.

Não consegues ver de cor meu pesadelo?
Cinzento, de cimento e chumbo.
O outono despluma o mundo,
e o desnudo sugere flores e frutos.
Novos viços e cores, novos abismos.
E tudo será novo.

Só eu como casca seguirei,
sem carne e sem sumo.
Ou antes, um morto me seguirá.

Um morto me seguirá mudo,
me seguirá surdo,
me seguirá roto.
O meu próprio morto me esperará e me carregará
no oco fundo dos seus membros cotos.

Deus não está aqui.
Fecho os olhos.
Os sentidos me evadem.
É preciso buscar em outro lugar.

Deus não está em qualquer outro lugar ou mundo.
Mas Deus sobretudo, Deus não era sequer necessário:
sob circunstâncias ligeiramente alteradas,
num universo privo de consciências carentes e culpadas,
Deus nunca existiu como o amor.

Isso tardiamente entendi,
já falecido ou nascido no bojo da minha noturna sorte,
pois o amor que não me salvou
o amor sempre foi mais forte que a própria morte.

Contudo, no embotado dos dedos ainda crispava
um pulsão, uma extravagância de sobrevida.
E nossas unhas sem raiz mas movidas
de um esforço ínfimo gretaram
a inesperada superfície
de mundos claros, extraordinariamente planos,
não poluídos dos bons motivos
que a sós e a esmo arquitetamos.

Já me vejo, pouco a pouco, de fora.
Minha presença é apenas demora,
hábito, inércia, vontade de entropia.
Porém, daqui a pouco já ressurjo
da história feita cinzas
mais grávido ainda

- Mas então alguém nos chamou pelo nome,
levantamos, assinamos alguns papéis,
e nos deixaram sair.

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